CONCÍLIO VATICANO I (1869-1870)

 


   Durante os três séculos que se passaram entre o o Concílio Tridentino e o Vaticano I, o mundo se expandiu significativamente em muitos aspectos. Mesmo antes de Lutero e do Concílio de Trento, os encontros cada vez mais frequentes com civilizações até então desconhecidas ao redor do mundo obrigou a Europa a ampliar seus horizontes. Nos dois séculos que se passaram desde o recesso de Trento em 1563, a Revolução Científica e o Iluminismo colocaram a fé em segundo plano e desafiaram a religião recorrendo ao racionalismo, ao secularismo e a uma mentalidade individualista. No final do Século XVIII, as revoluções americana e francesa atacaram monarquias e aristocracias. Os tradicionalistas defendiam as suas posições recorrendo ao direito divino e à hierarquia da lei natural, enquanto os revolucionários desejavam instaurar democracias soberanas e repúblicas baseadas em liberdades civis. Durante o Século XIX, o nacionalismo varreu a Europa e passou a competir com a filiação e a identidade religiosa como a lealdade final de cada cidadão.
   
   Com a adoção em massa dos princípios da Revolução Francesa em todo mundo com o seu trinômio: Liberdade; Igualdade e Fraternidade, não demorou muito para que isso começasse a ameaçar a Igreja em seu corpo de doutrina e concepção de hierarquia compreendida como algo natural e emanado por Deus. Por outro lado, as doutrinas modernistas sobre a religião, provenientes das péssimas filosofias: idealismo de Descartes e imanentismo de Kant começavam a se aflorar na mentalidade de muitos clérigos e leigos da época. Em suma, o Primeiro Concílio do Vaticano foi providencial para conter esses avanços catastróficos da modernidade sobre a Igreja.

O Syllabus de Pio IX


   Com as teses modernistas em alta no século XIX foi necessário um contra-ataque por parte da Igreja a elas. Isso se deu por meio da publicação do "Syllabus", um documento escrito por S.S. Pio IX onde condenava boa parte dessas teses. 
   O Syllabus condenou sistemas filosóficos como o racionalismo e o panteísmo, bem como ideologias sociais, a saber, o comunismo, erros relativos à moral cristã, principalmente ao casamento, mas, antes de tudo, condenou erros sobre a Igreja e suas relações com o Estado. De um modo geral, o Syllabus foi considerado quase que como uma recusa da Santa Igreja a aceitar a cultura moderna e, como tal, foi muito combatido; na França, proibiu-se mesmo a sua publicação. De facto, ele representava um movimento de defesa. Mais uma vez retirou-se a Igreja para o campo de sua tarefa mais original, que é a conservação do tesouro da fé e pôs um freio à crença no progresso incoercível e ao otimismo cultural dessa geração, que avançara com precipitação demasiada. Só poucos, fora da Igreja, compreenderam o que Heinrich, teólogo de Mogúncia, predissera como profeta no congresso católico de Trier, em 1865: "os medicamentos fortificantes são muitas vezes amargos... Somente quando a humanidade ultrapassar o século XIX, ela apreciará devidamente como o remédio fora eficaz e necessário".

Preparação do Concílio

   Para evitar que uma desorganização na preparação ocorresse como em Trento, a comissão dirigente de cardeais decidiu formar cinco subcomissões para a preparação do Concílio: I. Comissão da Fé, dirigida pelo cardeal Bilio para a elaboração das proposições dogmáticas; tomou ela o lugar das congregações Teológicas Tridentinas; II. Comissão de Disciplina Eclesiástica, dirigida pelo cardeal Caterini, prefeito da Congregação do concílio; III. Comissão dos assuntos de Ordens e Congregações religiosas, dirigida pelo cardeal Bizarri; IV. Comissão de Igrejas orientais e de Missões, sob a presidência do cardeal Barnaba; V. Comissão de Política Eclesiástica, sob a direção do cardeal Reisach. 

O Concílio do Vaticano

   Quando o Vaticano I foi convocado, havia dois aspectos logísticos inéditos até então. O primeiro era o de que a imprensa internacional e os telégrafos, que não existiam no tempo dos dezenove concílios ecumênicos anteriores, iriam manter o público informado sobre o desenrolar do concílio e, em alguns casos, incitariam a opinião pública no interesse de algumas das partes que participariam do debate. O segundo aspecto logístico era o facto de que, pela primeira vez na história, um concílio geral se reuniria em plena Basílica de São Pedro. O Concílio Vaticano I não se reuniu na nave principal da basílica, mas em uma grande capela lateral, pois ainda não havia microfones naquele tempo. Em um dado momento durante o concílio, as atividades tiveram de ser interrompidas para que alguns operários instalassem paredes provisórias e melhorassem a acústica, de modo que os membros do concílio pudessem acompanhar o que estava sendo discutido.

   Antes que os delegados se dedicassem exclusivamente aos debates  mais controversos do Vaticano I, que diziam respeito à questão da infalibilidade papal, eles elaboraram um dos documentos deste concílio, a Constituição Dogmática "Dei Filius". Essa declaração fazia uma abordagem bastante equilibrada das questões referentes ao conhecimento e racionalidade modernos, pois não condenava a razão em si, como algumas facções mais ultramontanistas e intransigentes gostariam que tivesse sido feito, de modo semelhante a tudo aquilo que havia sido condenado no recente Syllabus dos Erros. Por outro lado, a Dei Filius condenou veementemente o racionalismo e explicou suas consequências lógicas que levavam o homem à perda da fé.

   Nos diz a Constituição Dogmática Dei Filius que o racionalismo, ou naturalismo, é algo muito perigoso para o cristão, visto que, a doutrina racionalista nega por essência todo o aspecto sobrenatural da revelação de Deus, reduzindo tudo a um historicismo materialista criado por homens, e que isso acabaria levando naturalmente ao ateísmo.

A Infalibilidade Papal

   O debate acerca do dogma da Infalibilidade Pontifícia fora, sem dúvida, o cerne deste concílio e praticamente um sinônimo de "Concílio Vaticano I". Pio IX procurava um meio de afirmar vigorosamente a infalibilidade papal e a primazia da jurisdição papal. Ele queria declarar sem nenhuma ambiguidade que o papa era o responsável último pelos julgamentos e pela tomada de decisões da Igreja e que ninguém mais poderia passar por cima de sua autoridade. O papa tinha sempre a última palavra e poderia julgar todas as pessoas, mas ninguém poderia julgá-lo. De um modo mais específico, a agenda de Pio IX incluía a afirmação de que o papa era o líder inconteste da Igreja no que dizia respeito à sua disciplina e à sua administração, e que o papa poderia fazer declarações infalíveis sobre a fé e a moral baseando-se única e exclusivamente em sua própria autoridade.

   Apesar do Supremo Pontífice ser infalível, há condições bem específicas para que ele goze deste princípio da infalibilidade. Como nos explicita a Constituição Dogmática Pastor AEternus, Se as condições não forem cumpridas, não somente o papa como também os bispos podem cometer erros. Uma declaração ou uma homilia e, mesmo, uma encíclica pontifícia ou um texto conciliar não são necessariamente infalíveis. Somente o são, as afirmações para as quais a infalibilidade é reivindicada. 

(ver mais sobre " Magistério e seus graus distintos" em: https://xpivs.blogspot.com/2021/12/o-magisterio-da-igreja-e-seus-graus.html ).

   As condições para o exercício da Infalibilidade Papal são definidas pela Constituição Dogmática Pastor AEternus do seguinte modo:

 "Por isso nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis".

[Cânon]: "Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, seja anátema".

O Encerramento conturbado

   O Vaticano I havia chegado ao fim, embora não tivesse sido oficialmente encerrado, pois não houve tempo para isso: um dia depois da votação a guerra franco-prussiana foi deflagrada. Como na França precisava reunir todas as suas forças militares, ela não poderia mais proteger Roma como vinha fazendo até então, e, algumas semanas depois ela retirou todas as suas tropas da cidade. Em meados de 1870, os italianos invadiram e conquistaram Roma e os estados pontifícios. Pio IX havia conseguido a aprovação do seu decreto da Infalibilidade Papal em um concílio, mas o papado agora se encontrava em uma situação bastante precária.


Referências bibliográficas: 

JEDIN, Hubert; Ecumenical councils in the catholic church, 1960.


BELLITTO, Christopher M.; The General Councils: A history of the twenty-one Chruch Councils, 2002.


Constituição Dogmática: Pastor AEternus, Concílio Vaticano I, 1870.


Constituição Dogmática: Dei Filius, Concílio Vaticano I, 1870.


GAUDRON, Pe. Matthias (FSSPX); Catecismo católico da crise na Igreja, 2007.




   

   

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